Aos 97 anos, Francisco Gonçalves Gamero coleciona poesias. Os livros que ele já escreveu, editou e imprimiu contam parte de sua história. No ano passado, lançou o Francisco – poeta do coração e dividiu com leitores anônimos os versos que guardava em suas pastas e prateleiras
A casa é de esquina, no Canto do Forte, em Praia Grande, litoral de São Paulo. Logo na entrada, uma área com grama à direita e uma porta que dá em um corredor. Ao primeiro toque da campainha, um cachorro aparece para recepcionar o visitante. O ambiente interno é espaçoso e ‘chique’. Mas o encontro não é na sala com TV de cinquenta e tantas polegadas e nem na cozinha bem arrumada. É no quartinho, nos fundos da casa, que Francisco Gonçalves Gamero, de 97 anos, conhecido como seu Chico, costuma trabalhar. Foi ali que ele gerou parte dos versos de seu último livro, publicado no ano passado.
No caminho para os fundos da casa, Francisco conta que a entrevista quase não acontece. Na semana anterior ao encontro, seu Chico teve uma crise de pressão alta por conta de um remédio novo que está tomando. Mas o ‘doutor’ o tranquilizou. “Ele falou que estou mocinho, ainda. Que meu coração está forte”.
Ele mostra o quartinho com satisfação e cada item guardado ali marca algum ponto da sua vida. O entrevistado se apressa em pedir desculpas pela ‘bagunça’. “Estou trazendo as coisas aos poucos para cá e ainda nem tive tempo de organizar tudo”.
A primeira pergunta não parte da repórter, mas do próprio entrevistado. “Quem me indicou a você?”, questiona. Tento explicar que o caminho para chegar até ele foi longo, quando seu Francisco pede desculpas novamente: ele não escuta bem e usa um aparelho auditivo, que no momento da entrevista estava em manutenção.
Para manter a conversa, a solução é falar o mais alto possível. Vez ou outra, ele pega uma palavra e muda totalmente o foco da pergunta. E quem se importa? Cada vez que abre a boca para falar alguma coisa, seu Chico se diverte com suas próprias histórias e traz à tona lembranças vividas em um passado distante, mas nunca esquecido.
Bem abaixo da escada, há uma cama simples, que ele “usa de vez em quando para dormir”. O cômodo guarda o necessário: uma pia para lavar as mãos, muitos livros na prateleira acima da cama, notebook e dezenas de pastas com recortes de jornais e textos impressos.
As pastas coloridas e divididas em temas ficam guardadas em sua bancada, junto com outros papéis e o notebook, de onde saem os versos. Seu Chico mostra as pastas. Entre tantas, estão as nomeadas com a caligrafia caprichosa do dono, como meio ambiente, Praia Grande e com o nome de dois jornalistas que são seus ídolos: João Mellão Neto, colunista do Estado de S. Paulo, e Washington Novaes, jornalista que trata temas de meio ambiente e povos indígenas no mesmo jornal.
“Eu assino o ‘Estadão’ há mais de quarenta anos”, gaba-se. E guarda, também, recortes de outros veículos, como o Gazeta do Litoral, e daqueles para o qual escreveu alguns artigos. Nas matérias que citam seu Chico, ele faz questão de grifar com marca-texto. Aponta para o parágrafo onde estão as suas aspas e comenta a notícia, sem esconder o orgulho.
Mas os motivos de orgulho do senhor de 97 anos, nascido na cidade de Juruaia, Minas Gerais, no dia 03 de setembro de 1916, são também as relíquias. Exibiu com gosto sua coleção de seis volumes do Curso Prático da Língua Portuguesa, do ex-presidente do Brasil, Jânio Quadros, que governou o País de janeiro a agosto do ano de 1961.
POESIAS
Enquanto mostra sua coleção de livros e os recortes de jornais, seu Francisco conta como aprendeu a ler e escrever. “Fiz aulas em uma escola lá de Minas, mas aprendi, mesmo, lendo jornais”. De família simples, de pais lavradores e mais 12 irmãos, Francisco cursou escolas rurais em Muzambinho (MG), dos 13 aos 16 anos.
Chico aprendeu poesia no ‘ginásio’. Foi lá que soube o que era rimar e metrificar os versos. Por volta dos 15 anos escreveu uma de suas primeiras poesias para uma namorada (“namoro inocente, de pegar na mão, nada de beijo”, relembra). São os únicos versos seus que memorizou. Ele recita, esquecendo algumas palavras, mas orgulhoso por ainda se lembrar da maioria delas.
“Ah… tivesses meus desejos,
Pelo ardor meus loucos beijos,
Em enleios sensuais…
Levar-te-ia nos meus braços
Prendendo-te pelos laços
De abraços matrimoniais”
Foi quando começou a trabalhar em São Paulo, em uma indústria do setor têxtil, que seu Chico passou a se dedicar mais à poesia. Como encarregado de sessão, passava o tempo vago na máquina de escrever, registrando seus versos. E se tornou conhecido no local por conta disso. “As moças descobriram que eu gostava de escrever e escreviam para mim. Tem até carta de apaixonadas”. Seu Chico mostra diversos papéis com poesias e cartas destinadas a ele, datadas daquela época. Ele escolhe uma para me mostrar e, sem óculos, lê as palavras que recebeu há tantos anos.
“Querido Chiquinho,
Se Chiquinho ocê num arrespondeu u meu urtimo biete será qui vosmecê num ta tendo tempo?O num ta mal querendo papo cum a pobri cabocla aqui? (…) Sabi Chiquinho estô afrita pra saber u que rá qui eu te maguei com a urtimo bieti, se é istu aconteceu peçu perdão di jueio”.
LIVROS
Seu Chico começou a fazer – literalmente – livros bem antes de publicar o Francisco – Poeta do Coração. “Eu escrevia as poesias na máquina de escrever, tirava cópias e encadernava. Fazia uns três exemplares de cada”. E mostra todos com muito orgulho. No total, são seis, entre eles Do passado ao presente, do amor à saudade, Chamas e Cinzas, Pétalas do meu floral e Fragmentos de poesias.
Lançado ano passado, ‘Francisco – poeta do coração’ é uma compilação das obras anteriores. E seu autor gosta de dizer que seu estilo é o antigo, mesmo. O clássico. Com rimas e métricas. “Hoje ninguém mais faz isso. Eu faço de gosto”. E afirma que escreve de tudo: amor, fé, Deus. Tem poesia até sobre o lugar onde cresceu. “Se quiser, posso fazer uma poesia sobre a morte ou qualquer outra coisa agora”.
Foi a filha, Eliana Gonçalves Malho, quem decidiu levar a ideia dos livros adiante. “Ela pegou o livro, corrigiu todos os textos, tirou cópia e levou para uma gráfica de Botucatu (interior de São Paulo)”. Depois de uns dias, seu Chico recebeu a obra pronta, para algumas correções. “Fizeram uns 300 exemplares, que custou mais ou menos a dez reais cada”.
O lançamento ocorreu no ano passado, em 14 de junho. “Teve uma festa muito bonita, reportagem na TV Tribuna, veio a Prefeitura de Praia Grande e tudo”. E ele não para: já está adiantando outro livro, uma mistura de biografia com poemas. Engana-se quem acha que esse vai demorar para ser publicado. “Estou escrevendo para lançar em julho”, conta.
CENTENÁRIO
Viúvo há três anos, seu Francisco tem duas filhas – Eliana Gonçalves Malho e Maria Nazareth Golçalves. Entre seus passatempos favoritos, está escrever poesias no computador. Mas não quer saber de internet. “Comecei a usar essa tal da internet, mas vi muita coisa ruim. E estava me atrapalhando de escrever as poesias, porque perdia muito tempo na internet. Não quero saber mais disso, não. Mandei tirar daí”.
Um dos desejos de seu Chico é chegar aos cem anos. “Quando completei 90 anos, minha filha me fez uma festa linda em um restaurante de São Paulo. No agradecimento, fiz uma promessa: convidei todos para o meu centenário”.
Chico fez questão de explicar a capa do livro e disse uma das frases que mais marcou a conversa. “Sempre há paz onde existe amor”. Essa é a ideia que tenta passar na foto que estampa a obra. “O cachorro e eu somos o amor e a represa atrás é a paz”. A foto foi tirada em um recanto em Itu (SP), em um condomínio fechado, onde tem alguns chalés. Na imagem, Francisco aparece sorridente, em um local que adora estar – no meio da natureza, que tanto aparece em seus versos. E que vai continuar aparecendo em tantos outros que virão. Porque, com a boa disposição que tem, seu Chico ainda vai escrever muitos versos rimados e metrificados, do jeitinho que gosta. Quem disse que é tarde demais para ser poeta? Francisco é e sempre foi um poeta. Um poeta do coração.
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